A polêmica das cotas raciais
O lançamento de um Manifesto contra o Projeto de Lei que cria cotas para afrodescendentes, indígenas e estudantes de escolas públicas nas universidades federais, projeto esse que permitiria a esses grupos passarem com notas inferiores aos não beneficiados por esse sistema, e que também protesta contra o Estatuto da Igualdade Racial que visa adotar uma série de medidas polêmicas, entre elas, a obrigatoriedade de que documentos comuns informem a etnia do indivíduo que o porta, projetos esses que tramitam no Congresso Nacional, reacenderam a polêmica sobre a prática de políticas afirmativas visando a integração social de grupos marginalizados.
Quase simultaneamente ao primeiro manifesto, os defensores das cotas lançaram seu manifesto de apoio aos projetos de lei do senador Paulo Paim do PT do Rio Grande do Sul. Entrando nessa polêmica questão, resolvi escrever esse texto baseado em argumentos de ambos os lados, a fim de expor minha opinião sobre o assunto. Uma parte do que escreverei será baseada em textos de alguns autores que farei citação ao longo do texto com o desenrolar da minha argumentação, e para não ficar demasiado longo, darei atenção a questões que considero relevantes nesse tema.
Primeiramente pegarei o que sem dúvida é o “abre alas” da argumentação dos defensores das cotas e de onde todas suas argumentações partem, a questão da “dívida histórica” que toda a sociedade brasileira tem com os afrodescendentes devido ao longo período histórico em que esses foram escravos, e por conseqüência, marginalizados na sociedade.
Em uma dívida existem os credores e os devedores, no caso específico das cotas o credor é a população negra que a mais de um século atrás era em maioria escrava, e o devedor o resto da sociedade. Na argumentação da “dívida histórica” encontramos quatro questões, que se bem analisadas por qualquer pessoa, põem por terra essa argumentação: 1º) A universidade pública é sustentada pelos impostos pagos por todos os contribuintes, logo, uma grande parcela da população afrodescendente(incluindo os pardos) que não tiverem interesse de freqüentar uma universidade pública terão que pagar para uma minoria poder estudar nela; 2º) O Brasil é um país que recebeu um grande contingente de imigrantes, inclusive depois da Abolição da Escravidão em 1888, é justo que esses imigrantes e seus descendentes paguem por um erro que não cometeram?; 3º) É historicamente conhecido que o movimento abolicionista no Brasil surgiu entre a “elite branca”, e que negros brasileiros também possuíam escravos, o que derruba qualquer argumentação maniqueísta que vise culpar somente a “elite branca, má e perversa” pela escravidão no Brasil, se quiséssemos fazer um julgamento justo sobre culpados e inocentes deveríamos fazer um grade catálogo das famílias escravagistas e não escravagistas, o que é quase impossível; 4º) Juridicamente falando, um indivíduo não pode ser responsabilizado pelos erros e crimes de seus pais, avós, bisavós etc, portanto, no que tange a lei, o argumento de que toda a sociedade brasileira do século XXI é responsável pelos erros cometidos pelos seus antepassados é juridicamente inválido, o que não significa que um erro passado não deva ser reparado, contudo, não é através de atos arbitrários que o problema deve ser solucionado.
Esgotada a questão da dívida histórica passarei a tratar do caráter inconstitucional da Lei das Cotas. Ao decretar que um grupo racial tem privilégio de acesso a uma instituição pública, no caso a universidade pública, obtendo no vestibular uma nota inferior aos demais concorrentes não beneficiados, o Projeto de Lei quebra o princípio constitucional de igualdade perante a lei, independente de credo, etnia, ou grupo social. Uma pessoa inclinada a favor das cotas pode argumentar que esse princípio constitucional não se aplica na realidade brasileira, tendo em vista o baixo número de afrodescendentes nas universidades públicas, seja como aluno, seja como professor. Os defensores das cotas, porém , se esquecem(ou fingem esquecer) que na Constituição de 1988 em sua seção da Educação contêm o artigo 205 onde está escrito: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”; segundo me consta- não tenho nenhum conhecimento de protestos de grupos defensores dos direitos dos afrodescendentes a favor de uma escola pública(primária e secundária) de qualidade, todavia esses grupos não hesitam em protestar em defesa das cotas. Estranho não?
Digo isso porque é indubitável que a educação básica brasileira tem sérios problemas, evidenciados pelo baixo rendimento obtidos recentemente pelos alunos da rede pública brasileira em uma Prova Nacional de português e matemática, e em provas internacionais, onde os alunos brasileiros estão sempre entre as últimas colocações. É indubitável também, que a deficiência na educação básica pública no Brasil é uma explicação para o baixo número de alunos oriundos da rede pública e também de baixa renda(sejam eles brancos,pardos ou negros) nas universidades federais e estaduais, tanto como alunos como professores, pois estes não conseguem, na maioria das vezes, passar no vestibular que é a primeira etapa para se chegar a uma universidade, e porventura fazer carreira nela.
Já que cheguei ao ponto da deficiência do ensino público brasileiro, ressaltarei o caráter populista da lei das cotas. Voltando ao trecho citado da Constituição: “educação, direito de todos e dever do Estado”, mostra claramente que o Estado é responsável pela gestão educacional, se por motivos diversos o Estado se mostra um péssimo gestor em educação, é claramente evidente que a Lei das Cotas é uma forma de “tampar o sol com a peneira”,ou ainda, “empurrar o problema com a barriga”, ao passo que nossos legisladores ainda possam de politicamente corretos e preocupados com a “justiça social”. Uma coisa interessante no Estatuto da Igualdade Racial é que os partidos terão que reservar vagas para negros nas legendas partidárias. Por que nossos legisladores não criam diretamente cotas para deputados e senadores no Congresso Nacional e no Senado, aproveitando essa onda de integração racial?
A maior polêmica em relação a questão das cotas gira em torno da identidade racial, nos EUA, país onde surgiu essas políticas afirmativas de inclusão racial, há uma clara distinção entre negros e brancos, segundo o livro Relativizando do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, nos EUA não há a categoria de pardos, ou seja, mestiços como existe aqui no Brasil, no país da América do Norte qualquer pessoa mesmo com pele clara, se tiver algum parente direto negro ou mestiço, é considerado negro.
No inciso 3 do artigo 1 do Estatuto da Igualdade Racial consta o seguinte trecho: “para efeito deste Estatuto, consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”, portanto qualquer pessoa que se autodenominar afro-brasileiro poderá requerer cotas, logo, tendo conhecimento da grande miscigenação da sociedade brasileira, essa medida de implantar cotas é inócua. E se por acaso o Estatuto tentasse delinear as raças, estaria caindo num terreno obscuro que no passado foi responsável por um dos capítulos mais trágicos da humanidade, o nazismo.
A propósito, ainda na questão das raças, como bem lembra o jornalista Janer Cristaldo em seu texto “A Extinção do Mulato” (http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4501): “Nas últimas décadas, os movimentos negros insistiram na idéia de que raça não existe, ser negro seria apenas uma questão de melanina. Quando começou a surgir no Brasil a infeliz idéia ianque de cotas, tanto para a universidade como para admissão em empregos públicos, assistimos a uma súbita reviravolta: raça agora existe e deve ser declarada. O malsinado projeto do senador gaúcho determina que, em várias circunstâncias – no Sistema Único de Saúde, nos sistemas de informação da Seguridade Social, em todos os registros administrativos direcionados aos empregadores e aos trabalhadores do setor privado e do setor público – o quesito raça/cor será obrigatoriamente introduzido e coletado, de acordo com a autoclassificação”. Curiosamente depois de anos negando o conceito de raça os afrodescendentes agora o defendem, incrível não?
A idéia de que as cotas provocariam medidas racistas ainda não pode ser comprovada no Brasil, pelo que tenho conhecimento nas universidades em que já existem cotas ainda não foram registrados nenhum caso explícito de racismo, mas segundo nos relata o economista Thomas Sowell foi justamente após a adoção de políticas afirmativas nos EUA, que ocorreram uma série de problemas nesse sentido, ver: (http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4731). Aqui no Brasil, uma pesquisa feita no campus da UERJ mostra a desaprovação que a adoção de cotas gerou entre a comunidade acadêmica(http://www.universia.com.br/html/noticia/noticia_clipping_cjf.html). O relato de Sowell e a pesquisa feita na UERJ devem servir como reflexão sobre a validade de se implantar um sistema desses no Brasil sabendo que aqui brancos e negros vivem de maneira relativamente pacífica.
O leitor ou a leitora que chegou até aqui já percebeu com clareza que eu me posiciono contra as cotas, mas não posso deixar de contra-argumentar um ponto de vista dos anti-cotas -a idéia de que o ensino das universidades públicas piorará com a entrada dos cotistas- segundo um estudo preliminar feito na UERJ, a primeira universidade brasileira a adotar as cotas, foi feita a seguinte observação- “ Entre os estudantes que entraram por cotas raciais ou da escola pública, 49% foram aprovados em todas as disciplinas. Entre os que não entraram por cotas, essa porcentagem foi de 47%.”; ver: (http://aprendiz.uol.com.br/content.view.action?uuid=7b1e6b090af47010017546999a456b7a ). É lógico que esse é apenas um estudo preliminar, e se por algum acaso a qualidade do ensino da UERJ piorou (o que não é fato) isso se deveria mais aos sucessivos cortes de verba da instituição feitos pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, do que propriamente culpa dos cotistas. Por outro lado esse aparente sucesso não deve ser visto como um bom argumento para se defender as cotas, pois na pesquisa não é dito os dados dos cursos em separado(o que não invalida a argumentação de grande evasão e reprovação em cursos como Engenharia e Medicina), e é notável que um cotista agarraria com unhas e dentes uma oportunidade dessas, a pergunta que fica é a seguinte: se alguns cotistas são capazes de se manter bem nos cursos superiores, por que não seriam capazes de passarem no vestibular também sem a ajuda de cotas?
Termino esse texto concluindo que as cotas são em tese uma política equivocada por romper com o princípio do mérito, inconstitucional por ter a raça como uma característica de acesso privilegiado a uma universidade, não efetiva pois não há nenhuma garantia de que o problema da educação básica seja resolvido, populista, perigosa a medida que atos racistas e preconceituosos possam ser praticados por causa desse projeto de lei, além de ser falaciosa em sua argumentação. Como já disse anteriormente, não será com medidas arbitrárias que o problema da inclusão racial ou social será resolvido no Brasil, seria esplendoroso se pudéssemos acabar com todas as nossas mazelas apenas por decreto, mas isso de fato é impossível.
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